Livro das derrapadas no marketing
Todos nós, que trabalhamos com marketing, louvamos o dia em que se inventou o email, que é a mais fantástica e democrática ferramenta de comunicação jamais imaginada, capaz de colocar a mensagem certa na frente da pessoa certa, em questão de segundos, a um custo muito pequeno, quando não desprezível, o que a torna acessível a qualquer tipo de pessoa ou negócio, independentemente do tamanho.
Entretanto, enquanto nós sofisticávamos as formas de fazer o email marketing para torná-lo o mais possível segmentado e eficaz, poderosas forças começaram a operar no sentido de criar dificuldades para a utilização desta maravilhosa mídia. Em vez de preocupar-se em banir ou pelo menos inibir fortemente os envios de vírus e as fraudes praticadas através de emails falsos de bancos, Serasa, Embratel, Receita Federal e os “cartões virtuais”, falsos prêmios de loterias e outros artifícios para enganar ou colocar espiões nos computadores dos usuários, os provedores resolveram priorizar o ataque ao que chamam de “Spam”.
E sabem o que é “Spam” para eles? Basta acessar o site do Terra, do Globo.com, do Universo online, do Ajato e tutti-quanti e se verá que (com pequenas diferenças de vocabulário) eles definem “Spam” como qualquer “mensagem não solicitada” ou como qualquer “mensagem de propaganda”.
Ou seja, eles, os grandes provedores, se julgaram no direito de proclamar a interdição do email como mídia. Email marketing para eles é sinônimo de “Spam”. E o engraçado é que nenhum deles se incomoda com o nonsense de falar em “mensagem não solicitada”, como se pudesse existir alguma mensagem solicitada… salvo em situações excepcionais como a confirmação de uma compra pela internet.
Que cada cliente usuário dos provedores possa criar os seus filtros, de modo a selecionar o que deseja ou não receber é muito louvável e eu sou o primeiro a aplaudir. Mas que os provedores estabeleçam seus “filtros” por conta própria e os impinjam aos clientes, simplesmente banindo os emails a eles destinados, por classificá-los arbitrariamente como “Spam”, isto já é uma atitude digna dos Tribunais do Santo Ofício.
Travestidos de inquisidores, os programadores dos provedores deliciam-se em inventar regrinhas para definir o que pode e o que não pode. Se a mensagem tiver algum link ou imagem, ela é spam… Se ela tiver um ponto de interrogação ou de exclamação na linha do assunto, também é. Se ela tiver a palavra “oferta” no corpo da mensagem, também é. Se vier de uma determinada origem, “suspeita” (para eles), idem.
O UOL, então, esmerou-se em matéria de sofisticação policialesca. Seu sistema “anti-spam”, com os ridículos hieróglifos que são obrigados a decifrar todos os que têm a ousadia de enviar um email para um assinante Uol são a garantia de que este, iludido por esta bobagem “protetora”, acabará perdendo boa parte das mensagens de seu interesse que lhe são enviadas, inclusive as pessoais. Mesmo porque, ainda que esteja disposto a encontrar a saída deste labirinto, aquele que lhe enviou a mensagem tem grande chance de não estar mais à frente do computador quando este desafio chegar. E pode não conseguir distinguir um “9” distorcido de um “g” minúsculo, ou não ter tempo ou paciência para essa brincadeira.
Gente, o que é isso? Onde estamos? Será que os usuários de Internet são pobres coitados que não têm capacidade de saber o que querem ler — e não sabem simplesmente descartar o que não querem? Será que eles não têm a tecla Delete nos seus teclados? Precisam ser monitorados pelos big brothers provedores para lhes dizer o que é e o que não é legítimo?
Se esses grandes provedores, que se julgam donos do mundo, do globo, da terra e até do universo, acreditam que estão prestando um grande serviço a seus clientes por lhes fazerem esta censura “anti-spam”, enganam-se tão redondamente quanto o mundo em que pretendem mandar. Na verdade estão lhes prestando um enorme desserviço, pois mensagens importantes e bem vindas (ainda que “não solicitadas”!) deixam de ser recebidas por esses usuários, graças às regrinhas e aos quebra-cabeças que lhes são impostos. E pode haver maior derrapada de marketing do que sumir com as mensagens de interesse dos usuários? Alguém gostaria de ter suas cartas censuradas e surrupiadas pelo carteiro? A ironia está em que frequentemente as próprias mensagens enviadas pelos provedores ou por empresas a eles ligadas acabam sendo barradas pelos filtros que eles mesmos (ou os outros provedores) criam. Eles morrem do seu próprio veneno!
Pior, contudo, do que censurar os emails enviados a seus usuários, é censurar aqueles que estes mesmos enviam. Sim, porque as regrinhas inquisitoriais dos provedores são implacáveis: se algum cliente deles (individual ou empresarial) ousar mandar uma mensagem para um grupo ou fizer email marketing para suas listas de contatos, arrisca-se a ser simplesmente expulso do provedor, como “spammer”. E se, por acaso, tiver um site hospedado no provedor, este é tirado do ar arbitrariamente, de um momento para outro.
Nem na época da ditadura o próprio governo ousou atentar tanto contra a liberdade de comunicação quanto fazem agora instituições privadas, que se julgam no direito de censurar o conteúdo de emails que, aliás, elas não deveriam nem ler, porque são correspondências privadas! Joseph Goebbels, Ministro da Propaganda nazista, se vivo estivesse, adoraria ter esta ferramenta a seu dispor!
E em nome do quê tanta fúria contra o email, tanta unanimidade em classificar qualquer propaganda por esta mídia como “spam”? Será que os provedores estão assim tão preocupados com a “limpeza” da caixa de entrada dos seus clientes? Será que existe uma demanda tão grande assim por parte dos consumidores por serem monitorados?
A resposta é certamente “não”. E a verdade é que esta preocupação com o que chamam de “privacidade” dos consumidores (aliás em nada invadida por um email, por mais mal direcionado que este seja), nada mais é do que uma cínica desculpa para reprimir o uso de uma mídia que eles, os provedores, vêem como concorrente, pois acham que não ganham nada com ela, a não ser suportar o tráfego das mensagens (aliás uma obrigação deles, pois é um serviço pago pelos usuários).
O que estes provedores querem é que se anuncie neles, com banners ou outros formatos. Ou então que se use as mídias nas quais os grupos a que pertencem têm fortes interesses, como jornais, revistas, redes de televisão, empresas de telemarketing… e nas quais ninguém se preocupa que as mensagens sejam “previamente solicitadas” pelos destinatários… Aliás, no caso específico do Terra soa bem falsa esta preocupação com a “privacidade” do consumidor quando a sua empresa mãe, a Telefonica, controla também a Atento, uma das maiores (senão a maior) empresa de telemarketing do país. Pois, afinal, será que alguém teria a coragem de dizer que um email de propaganda incomoda e invade mais a privacidade do consumidor do que os telefonemas de venda que este recebe no meio do seu jantar ou interrompendo seus afazeres?
Que os provedores cuidem de prover o serviço que prometem, a preços competitivos e sem as constantes quedas que conhecemos! Que fiquem “atentos”, isto sim, à disseminação de vírus e outras pestes, bem como aos emails espiões que volta e meia conseguem passar pelos “filtros” que barram as nossas (legítimas!) propagandas. E parem de bancar a inquisição digital, pois não têm legitimidade para isto. Seria bom que o Congresso e a Justiça (a verdadeira) parassem para olhar para esses que montaram um poder paralelo que legisla, policia, condena e executa por conta própria.
O caso relatado nesta coluna é mais grave do que uma simples derrapada. Porque derrapadas, na minha definição, são “erros” causados pelo que o velho mestre Kotler chamou há décadas de “miopia”. Porém quando a miopia é tão grande que faz com que empresas ultrapassem limites éticos e montem um grande e falso cenário, com uma ideologia pretensamente favorável ao cliente (o “anti-spam”), porém na verdade apenas para servir a interesses próprios, seria muito pouco chamar isso de “erros”.
Esta coluna já tinha saído quando a imprensa divulgou o resultado da Cúpula sobre a Sociedade da Informação, realizada na Tunísia, em que a delegação do governo brasileiro se aliou vergonhosamente aos países mais retrógrados e repressivos do mundo no que diz respeito à livre circulação de idéias na Internet, como o Irã e a China… e que aspiram por maior controle governamental sobre a rede. Não conseguindo (felizmente!) tirar o controle da internet dos Estados Unidos o grupo de países “rebeldes” irá focar sua atenção no que conseguiu em Túnis: um maior controle sobre o spam! Vindo de quem vem imaginem quais vão ser os critérios…