Livro das derrapadas no marketing
Inovação e sofisticação sempre foram características marcantes do Pão de Açúcar, desde aquele tempo em que este era o nome de uma padaria onde meu pai buscava para nós um ótimo pão doce e onde, de repente, já não se precisava mais fazer fila para pedir as mercadorias ao vendedor: elas estavam expostas em prateleiras e o cliente já podia ir pegando… inaugurando assim o próprio conceito de supermercado no Brasil.
Não vou contar a história de como esse grupo evoluiu e chegou à posição que tem hoje, pelo menos em vários estados do país. Relembro apenas que ele foi o primeiro a fazer uma experiência de supermercado online, que não deu certo, mas foi o embrião de toda uma operação delivery. Errar faz parte do dia-a-dia dos marketeiros e pode ser algo muito positivo, desde que se tire as lições dos erros.
Há um erro, contudo, que estão cometendo e que está longe de ser exclusivo desta rede (é aliás um pecado generalizado neste segmento) que consiste em ir com sede demais ao pote, querer ganhar demais em todas as pontas e com isso acabar derrapando com o cliente, que é o que mais importa.
Refiro-me ao critério de seleção dos produtos e marcas à venda e à “empurração” das marcas próprias. Vejam só. Vou até lá procurando o (inigualável) sorvete de chocolate La Basque e, na maioria das vezes, encontro esta prateleira vazia, ou apenas com os sabores menos atraentes desta marca, como baunilha, mamão, macadamia… Mas como que por acaso, na prateleira de cima está, em oferta, o sorvete de chocolate da marca Pão de Açúcar! Que experimentei uma vez e é uma versão piorada dos semelhantes, como Kibon e Nestlé. (Aliás, o sabor mais procurado do Kibon, o chocolate, deve estar sendo sonegado pelo fabricante porque jamais se encontra, em lugar algum).
Passando pelo corredor dos queijos, procuro o Minas Padrão da Tirolez, o melhor entre as marcas comuns de supermercados. Mas ele nunca está no Pão de Açúcar, que só oferece as marcas Quatá e a sua marca própria “light”, que tem gosto de sabão. Preconceito meu contra a Quatá? De modo algum, pois o seu queijo tipo cottage é muito melhor que o da Tirolez, que parece ser da Pirelli… Só que, para o cottage, o Pão de Açúcar sempre tem o Tirolez e nunca o Quatá…
Apreciador do pão preto Pinheirense, cansei de procurá-lo no Pão de Açúcar que freqüento, onde antigamente eu o achava, às vezes. Hoje lá só encontro pães pretos ressecados e sem gosto e, claro, um de marca própria com “gosto de nada” muito pronunciado…
Não vou dar mais exemplos, para não cansar o leitor. Minha experiência pessoal é apenas uma amostra de uma situação que o cliente da rede deve encontrar em muitas outras (senão todas) as categorias.
Adivinho (mas não justifico) as razões dessas coisas. É que, certamente, as marcas líderes e aquelas que oferecem os produtos de melhor qualidade, são as que têm maior custo em cada categoria ou que são mais relutantes em aceitar as condições de negociação draconianas impostas pelas redes… E o supermercado, para “castigá-las”, deixa de compra-las e as substitui por concorrentes ou por sua marca própria, que nada mais é do que um concorrente oculto, geralmente de marca e qualidade inferior pois, caso contrário, a marca seria exibida com orgulho e não seria escondida atrás da marca do supermercado.
Tudo indica que os supermercados têm um solene desprezo por um dos pilares do marketing, que é o valor das marcas. Ou então acham que a marca deles é tão forte que pode suplantar todas as demais, em todas as categorias, mesmo que ela embale o produto de pior qualidade… Como se cada marca, em cada categoria, não tivesse atrás de si anos de investimentos em produto e em propaganda e estes não tivessem gerado nenhum reconhecimento ou prestígio que faça diferença…
Será que é uma boa prática de marketing deixar de oferecer as melhores marcas para empurrar aquelas que trazem maior lucro ao supermercado? Novamente isto me parece coisa de “financeiros” de visão estreita e imediatista, que passam por cima do marketing e não fazem este raciocínio óbvio: Será que o cliente que faz questão do sorvete La Basque e do pão Pinheirense não vai preferir ir direto em outro lugar, onde esteja certo de encontrar essas marcas, e lá fazer toda a sua compra, inclusive daqueles itens que ele encontraria no Pão de Açúcar? (pois é isto que eu tenho feito ultimamente…). Para tentar ganhar em tudo, arriscam-se a perder tudo, inclusive o cliente!
Outra prática generalizada neste setor, à qual o Pão de Açúcar também sucumbe, é a mania de mudar as coisas de lugar na loja. Já li eminentes exposições de “especialistas” em marketing de varejo, argumentando o quanto esta imposição de “novos roteiros” para os clientes os faz comprar itens fora de sua lista de compras… Mas será que alguém já mediu quanta coisa da lista de compras o cliente deixou de levar porque não achou onde costumava estar? E quem tem paciência ou tempo para voltar ao outro extremo dessas lojas enormes para buscar o que não achou quando passou por lá? Eu é que não volto!
Cartão “Mais” ou menos?
A derrapada maior é a do cartão “Mais”, que se auto-intitula “programa de relacionamento’. Faça um Cartão Pão de Açúcar Mais: você tem muito mais a ganhar“, diz o folheto oferecido nos caixas visando a aquisição de novos membros.
Quais são os benefícios de se associar?, me pergunto.
Quando você menos espera, tem uma promoção exclusiva. Você conta com 100 ofertas exclusivas todos os meses. E ainda tem facilidades na hora de pagar as suas contas, diz o folheto.
Que promoção exclusiva? Que tipo de oferta exclusiva? O produto é exclusivo ou é o preço? Que facilidades de pagamento são essas? Onde serão feitas essas ofertas? Na própria loja eu nunca vi nenhuma… Quando terei uma oferta, se eu aderir? “Quando menos eu esperar”?… Ora, tenham paciência vocês, porque eu não tenho!
Procuro no folheto e não acho mais nenhuma informação ou explicação sobre os benefícios deste cartão. Na página 2 há um questionário bastante detalhado para que eu forneça dados pessoais de todos os membros de minha família, inclusive renda e CPF, para utilização em ações promocionais do referido cartão (só não me dizem que ações são essas e o que eu ganho com elas). E nas duas páginas finais (pasme!) um texto em 200 linhas de um contrato de adesão ao Programa de Relacionamento Pão de Açúcar, daqueles escritos por advogados e que não explicam nada: só servem para assustar o cliente.
Será que algum cliente vai fornecer informações pessoais e confidenciais sobre si mesmo e sua família para participar de um programa cujos benefícios não são explicados e que implica adesão a um detalhado contrato que ele com certeza não terá paciência de ler? Certamente não. E se ele ler é que não adere mesmo. Eu mesmo até ia entrar no programa, para conhecê-lo, mas quando vi que, além de tudo, teria que entregar este questionário confidencial aberto, na mão de um funcionário da loja, assustei. Deus me livre! Que raio de “confidencialidade de dados” é essa que garantem, mas que começa com os dados da minha família rodando de mão em mão?
Gente! O que se pode esperar de um “relacionamento” que já começa assim? Minha conclusão é que, de duas uma: ou o cartão Mais não existe mais e não estão querendo mais adesões. Ou então o cartão e o programa existem e o Pão de Açúcar está precisando de profissionais competentes para cuidar da sua operação e divulgação.
Em tempo e bem a propósito: esta coluna já estava escrita quando li nos jornais que o Grupo Pão de Açúcar acaba de dispensar todas as suas agências de propaganda e vai fazer toda sua comunicação “em casa”. Será possível que até a propaganda eles vão agora pasteurizar e embalar em marca própria? Será que vão optar por uma propaganda que “não fede nem cheira” como os seus produtos de marca própria? Eu já vi esse filme da house agency em muitas empresas e ele não costuma ter um happy end.
Em tempo: coincidência ou não, algum tempo depois da minha coluna e de uma simpática acolhida pela equipe de marketing do Pão de Acúcar, as marcas de cuja ausência reclamei começaram a aparecer nas lojas da rede.