Livro das derrapadas no marketing
Há empresas com as quais temos um relacionamento muito especial. O jornal O Estado de S.Paulo, para mim, é uma delas, e sob vários pontos de vista. Por um lado, como jornal em si, pois sempre o considerei como o melhor quotidiano do Brasil (e um dos melhores do mundo). Por outro lado, contribuíram para esta admiração os laços de amizade de meus pais com os irmãos Mesquita, particularmente com o falecido Alfredo, o teatrólogo, fundador da Escola de Arte Dramática e dono da histórica Livraria Jaraguá, onde se reunia a intelectualidade dos anos 40 a 60. Além disso, minhas primeiras “letras” foram artigos que escrevi sobre cinema, publicados no saudoso Suplemento Literário do Estadão. Pessoalmente devo muito aos Mesquita, talvez mesmo, sem exagero, a própria vida pois, graças à influência deles, fui libertado da prisão política, na ditadura, e pude rumar a salvo para a França.
Por essa razão, tudo o que diz respeito ao “Estadão” me toca de perto, em especial as campanhas de propaganda que têm sido feitas para este jornal que, a meu ver, só denigrem a sua imagem. Há alguns anos veiculavam-se campanhas em que, já não me lembro dos textos exatos, dizia-se algo como “Se você não entende isso, não sabe aquilo, precisa ler o Estadão”… Ou seja, chamava-se de ignorante o leitor potencial, aquele que se queria trazer para o jornal, na esperança de assim conquistá-lo… E, por tabela, rotulava-se também de ignorantes aqueles que já eram leitores e assinantes do jornal, pois se a propaganda dizia que era um jornal para ensinar quem não sabe… que outra imagem se poderia projetar de seus leitores?
Recentemente, contudo, a agência que cria para o jornal conseguiu bater todos os recordes de non-sense, levando ao ar uma campanha que me espanta ter sido aprovada pelo cliente. Fosse eu que estivesse lá no marketing do Estadão e recebesse essa idéia, a teria tomado como brincadeira de mau gosto e pedido que me mostrassem a campanha verdadeira, que devia estar escondida na pasta…
Trata-se de uma campanha que já começa com a dificuldade de nomeá-la porque o áudio do seu comercial é praticamente inaudível. Revendo várias vezes consegui decifrar algo como: “Inho, inho, inho, ão, ão, ão…… inho é preguiça, ão é contradição, é evolução, é discussão… é criação…. abre o bocão”… Em meio a tudo isso, imagens de seres pretensamente “modernos” ou “avançados”, fazendo caretas, piruetas, entre eles o diretor de teatro José Celso, fazendo o papel de um velho ridículo, em uma das piores performances de sua carreira. A única frase completa do comercial é o seu fecho, em que se diz que “O Estadão é o jornal de quem pensa ão”… Foi esta a grande criatividade da campanha: usar o aumentativo carinhosamente dado pelos leitores ao jornal para inventar uma charada psicodélica, que além de tudo é de extremo mau gosto. Este comercial é indescritível: só vendo para captar o seu total despropósito.
Eu, que sou do ramo, imagino o que os talentosos criativos devem ter querido dizer com isso. Deve ser algo como “O Estadão é moderno, é avançado, é corajoso”, ou “Quem é ‘bão’, lê o Estadão”, ou algo do gênero. Duvido, contudo, que se fosse feito um teste com o mercado potencial, alguém do público-alvo de longe percebesse essas brilhantes intenções dos criativos. Aposto que, numa discussão em grupo, a imagem que esse comercial deve passar é que o Estadão é um jornal de loucos.
Se a longínqua intenção era “popularizar” o jornal, desfazer a sua imagem de “sisudo” ou “de leitura difícil”, como explica o site da agência, os seus criativos derraparam várias vezes. Primeiro porque não se busca ampliar o público de um jornal (ou de um produto qualquer) ressaltando aquilo que ele não é. Se o jornal é sério, é consistente, tem densidade de informação, é isso que se deve destacar e não passar a idéia de que qualquer debilóide é capaz de apreciá-lo. Segundo porque um eventual tipo “modernoso” que se sinta identificado com este comercial psicodélico certamente não gostará do jornal. E terceiro porque os que apreciam o jornal jamais iriam se identificar com os espécimens humanóides apresentados no anúncio.
Já testei campanhas como essa em grupos, infelizmente na maioria das vezes depois que os resultados se revelaram péssimos e o cliente quis saber por que. E, quase sempre, o que se verificou é que as campanhas eram incompreensíveis, ou às vezes passavam a mensagem oposta àquela que o cliente desejava e a agência garantia…
São raras, contudo, as agências que têm a humildade de colocar suas talentosas “criações” à prova de um pré-teste sério com o público, antes de veiculá-las. Tanto porque há risco do consumidor detonar a sua pretensa criatividade quanto porque, geralmente, as campanhas são feitas na última hora e não se quer atrasar o faturamento… Acordem, amigos do Estadão! Nenhuma agência é dirigida por Deus! Tudo, mas tudo mesmo, precisa ser pré-testado, salvo aquilo que o seu bom senso já disser que deve ir direto para a lata do lixo.