Livro das derrapadas no marketing

Quando até a Veja não se enxerga…
Colunista: Antonio Silvio Lefèvre – Edição 05/09/2005

Esta derrapada é de uma veterana do marketing direto brasileiro, onde eu mesmo trabalhei por muitos anos (há outros tantos atrás) e onde, ouso dizer, eu aprendi as “primeiras letras” do marketing: a Editora Abril. Por isso mesmo me espanto que os novos da casa não tenham sido ensinados ou que não haja mais quem lhes transmita as experiências. Reinventar a roda a cada nova geração de executivos é, aliás, um vício permanente de muitas empresas.

Lá por meados de julho, recebi de Veja uma dessas cartinhas tipo self-mailer, falando de renovação da minha assinatura.  Olhei a data da expiração e descansei… Afinal, ela vai até 18 de outubro, não tem pressa… Em 17 de agosto recebi outra cartinha com a chamada: Está garantido! Você vai continuar recebendo sua revista. Sem precisar fazer absolutamente nada.  E a carta continua assim: Conforme informamos na carta anterior, a sua assinatura já está sendo renovada pelo Renova Fácil Abril. E, de um modo rápido, prático e seguro, você está garantindo o prazer de continuar a receber e ler sua revista preferida com todo conforto,sem perder nenhuma edição.

Bom, até aí, nada contra, embora o redator exagere ao assumir que Veja é a minha revista preferida. O parágrafo seguinte, contudo, esquece as  belas palavras e revela as verdadeiras intenções da abordagem: Desta forma, o débito continua programado para seu cartão de crédito, conforme indicado abaixo (…). O novo período da sua assinatura é: 19/10/2005 a 12/10/2006. Seu plano de pagamento é de: 06 parcelas mensais de R$ 47,90. (…) A fatura da parcela correspondente está agendada para ser enviada ao seu cartão no dia: 26/08/2005 (…)

O que? Minha assinatura expira em 18 de outubro e eles vão me cobrar a renovação em 26 de agosto? Assustado, procurei na carta alguma via de escape e achei isto no PS: A partir de agora, você passa a contar com o Renova Fácil Abril para renovação do próximo período de sua assinatura. Você será comunicado com antecedência. Caso não queira renovar neste momento ou deseje maiores informações sobre a renovação automática de sua assinatura, ligue para a Central de Atendimento (…)

Que “privilégio” este de ser cobrado com antecedência” de 60 dias! Isto é de fato muito “fácil”, mas é para o financeiro da Editora. Sim, a Veja me diz (mas só no PS) que ligue para eles se quiser “maiores informações”. Ainda que perdoando o redator pelo pecado mortal de atribuir um tamanho às informações, não dá para perdoar o marketeiro ou talvez o “financista” que bolou este sistema de renovação que é uma verdadeira armadilha para cliente!

Querem saber mais? No dia 24/08 a Abril postou mais uma cartinha, que chegou no dia 26, avisando alegremente: Sua Assinatura de Veja já está renovada pelo sistema de débito automático no cartão de crédito.(….) Agora você tem um ano de boa conversa… A fatura da parcela correspondente foi enviada ao seu cartão no dia… 26/08/2005.

Atentaram para a pretensão paternalista que o redator da peça atribui à revista de propiciar um ano de “boa conversa” ao leitor? Isto é um verdadeiro insulto à sua inteligência! Mas o mais grave é o fato de eu ter sido informado que o débito já havia sido feito… no próprio dia em que recebi a carta!  Com certeza só os assinantes muito atentos devem “acordar” e ligar para lá reclamando. Os demais (como eu), quando acordam, “já era”.

Cometer espertezas como essas com os clientes é a pior derrapada que se pode imaginar para qualquer empresa. Sim, porque mesmo engolindo o sapo, eles se sentem enganados. E para uma empresa cujo produto (revista) depende principalmente de credibilidade, este pequeno golpe pode ser mortal para a imagem.

Não estou condenando a renovação automática de assinaturas em nome de uma interpretação exagerada do código do consumidor. Eu não “vejo” por este lado e acho que a renovação automática é boa para a editora e o cliente, de modo que este não se esqueça de renovar e a editora não se arrisque a perder um assinante por causa da sua distração.

Mas entre este nobre objetivo e obrigar o leitor a renovar com dois meses de antecedência uma revista semanal há uma enorme distância, que separa o recurso inteligente do burro. Daquele tipo de burrice tão típica de alguns “financeiros” de visão estreita… Dá para entender porque eles querem o dinheiro antes, mas cabe aos marketeiros e àqueles que estão em cima deles lembrá-los que não se pode passar a gula financeira à frente do “bom comportamento” com o cliente. Se a empresa oferece a este algum benefício, ele tem que ser verdadeiro. De nada adianta o blablabla do “marketing de relacionamento” com o cliente se, por trás dele, houver apenas a intenção de tirar vantagem deste.

Alguns desses “executivos” arrogantes acham que os clientes são ingênuos e que vão cair eternamente em qualquer truque. Mas os clientes sabem que, quando quiserem, estas duas poderosas e definitivas palavras pertencem a eles: “quero cancelar”.  Podem estar certos de uma coisa: este procedimento da Abril não apenas não serve para reter assinantes, como certamente constitui um eficaz sistema de “eliminação de clientes”, como explica e exemplifica Gordon Lewis no seu genial livro Marketing Mutilado, que eu tive a honra e a satisfação de traduzir.  

Qual seria então o procedimento correto para corrigir esta derrapada? Para não dizerem que eu apenas critico, eu então explico: lembrar o cliente um mês antes do final de sua assinatura e fazer o débito no seu cartão na data em que se inicia o novo período. Assim o cliente terá um mês para se manifestar e – principalmente – se sentirá respeitado em sua inteligência. Muito difícil de fazer isso? Não se alguém resolver pensar um minuto no assunto com uma cabeça de marketing.

PS – Esta coluna já estava pronta quando fui surpreendido por mais uma cartinha da Abril, com o título Obrigado por continuar conosco e boa sorte para você. Dentro, o texto diz:

Estamos muito honrados em saber que você renovou a sua assinatura e que continua sendo nosso Assinante Abril. Esta sua escolha nos deixou tão felizes que queremos não apenas lhe agradecer por sua opção como também trazer uma ótima notícia para você. Além do conforto de receber sua revista em casa (…) você agora tem a chance de ganhar um carro 0km ou um prêmio em dinheiro. Esta é a promoção Escolha Seu Prêmio. Uma promoção totalmente exclusiva para Assinantes Abril. Para participar, preencha o cupom abaixo com seu código de assinante, responda nossa pergunta e envie o cupom até o dia 07/12/05 para a Editora Abril (…) É necessário selar e envelopar.

 A escolha de prêmio é entre um carro Crossfox ou R$ 50 mil em dinheiro.

“Minha escolha” uma ova! Trocando isso em miúdos, eles estão me parabenizando por ter caído na armadilha de “renovar” algo que ainda tem 60 dias para terminar e, só para o caso do meu pé não ter ficado bem preso nas amarras, estão me oferecendo a miragem de um prêmio atraente, de modo que eu fique bem bonzinho até lá e não tente escapar. E nem o envelope-resposta e o selo para participar deste deste concurso “segura bobo” eles fornecem, como é costume em todos os concursos que se prezam: eu que me vire e vá até o correio!

Aliás, por falar em Correios, não consigo evitar a comparação desta tentativa de “comprar” a passividade do leitor através de um presente virtual com aquela imagem inesquecível do funcionário da estatal embolsando os R$ 3 mil. Pelo menos ele tinha certeza de receber o “prêmio”… só não sabia no que ia dar…

Fazendo o paralelo, pergunto a você, leitor: como conciliar a postura independente, correta  e corajosa da revista Veja na crise política pela qual estamos passando com esses ardis dos seus marketólogos-financistas que eles têm a ousadia de chamar de “marketing de relacionamento”? Nenhuma empresa pode ter duas imagens junto ao mercado, uma boa e outra ruim. Uma delas acaba prevalecendo. E, como todos sabem (principalmente a Veja), notícia boa não é notícia. Mas a ruim é! Cuidado para não derrapar ainda mais, pessoal, porque vocês já foram longe demais nesta curva perigosa!

PS-2 – O PS acima já estava escrito quando abri a revista Veja desta semana e caiu no meu colo um encarte de 8 páginas oferecendo a Promoção Assine uma revista da Abril e concorra a 1 Crossfox ou 2 sorteios de 50 mil…

Quase simultaneamente chegou um email oferecendo a mesma promoção para qualquer revista e mais um desconto de 25% na nova  assinatura.

E eu que tinha acreditado pelo menos naquela linha que dizia ao assinante Veja prematuramente renovado que a promoção era “totalmente exclusiva”… Pelo visto o pessoal comercial da revista não se incomoda com o crescimento dos seus narizes e realmente não tem limites em sua capacidade de derrapagem. A ponto de, em sua gula, entrar numa contradição como esta de oferecer uma promoção “exclusiva” para todo mundo e mais um desconto na nova assinatura… Por que diabos iria um assinante da revista renová-la 60 dias antes se pode esperar que ela termine e aí fazer uma nova, com desconto?… Acorde, gente! O mundo existe e os clientes (pelo menos eles) têm cérebro.