Livro das derrapadas no marketing
Em 2003, quando trabalhava em sua tese de doutorado¹, minha mulher, Elza Padua, foi pesquisar, durante um ano, na Universidade Nova de Lisboa e – como tem grande talento para negócios imobiliários – alugou um estúdio muitas vezes centenário dentro do Castelo de São Jorge. Fui seu hóspede, por diversas vezes, nessa inusitada morada, e descobri, nos meandros do castelo, muitas coisas curiosas e interessantes, inclusive diversas lojinhas, que, provavelmente, mantinham o mesmo aspecto há três séculos, ou mais.
A uma delas, uma mercearia – ou empório, como dizia minha avó Nair – ia quase todos os dias, em busca de pãezinhos, leite, Água das Pedras², frutas e legumes frescos. O marido servia e a mulher ficava na caixa. Não demorei para constatar que era lesado por ambos: enquanto um roubava no pêso, a outra o fazia no trôco…
A experiência fez-me voltar, no tempo, à época em que a minha já citada avó tinha exatamente as mesmas queixas em relação ao seu Manoel, do empório que ficava na esquina de sua casa, na antiga rua Dona Hipólita³, em São Paulo. E, antes que me acusem de lusofobia, faço questão de esclarecer que esses pecadilhos históricos são registrados em todos os lugares, desde o início da civilização; aos meus coetâneos, lembro os maravilhosos livros de Monteiro Lobato, de nossa infância, onde Tia Nastácia não cansava de se queixar das mercadorias falsificadas do Elias Turco, da venda do vilarejo.
Como sabemos que nada muda, apesar de tudo mudar – como naquela observação do italiano Lampedusa, no livro Leopardo – hoje em dia o roubo no peso ou no troco coexiste, nas feiras livres – nos moldes antigos – e nos grandes hipermercados, institucionalizado pelas empresas multinacionais, que alteram os pesos e as fórmulas dos seus produtos – e são periodicamente multados pelos órgãos de fiscalização do governo.
O Marketing, do jeito que nós, profissionais deste ramo, o tentamos definir – como um conjunto de atividades visando conciliar os interêsses econômicos dos produtores com a satisfação dos desejos e necessidades dos consumidores – existe há menos de 100 anos. A maioria dos especialistas aponta o ano de 1931 como data de seu nascimento – pois foi quando Neil McElroy criou, na Procter & Gamble americana, um setor da empresa organizado por marcas chamado brand management – que se tornaria a gerência de produtos. Há quem diga que o marketing moderno só passou a existir, de fato, depois que os professores americanos Jerome McCarthy e Theodore Levitt criaram, respectivamente, os conceitos dos 4 Ps (product-price-place-promotion) e da “miopia”, em marketing, no início dos anos 60. Reforça esta versão o fato de que a primeira edição da nossa “bíblia” – o livro Marketing Management, de Philip Kotler – é de 1967.
Tendo começado nesta atividade em 1959, no setor de pesquisa da Nestlé, posso considerar-me um marqueteiro jurássico – ou avant la lettre (para os cultores do idioma francês) e afirmar – aqui – que uma coisa que permeou as carreiras desta minha geração foi uma certa visão idealista da nossa atividade. Ainda que variassem as definições, todas elas concordavam num ponto: fosse qual fosse a estratégia escolhida, o ponto de partida para a oferta de bens e serviços era a satisfação das necessidades e/ou desejos dos consumidores. O lucro viria, no final, como uma espécie de prêmio.
Todavia, quase no mesmo momento em que nascia esta visão de marketing, um advogado americano, de origem libanesa, chamado Ralph Nader, iniciava uma causa célebre com o livro Unsafe at any speed, criticando a indústria automobilística. Surgia o “consumerismo”. Os pecados apontados por Nader – e os seus muitos seguidores, incluindo repartições fiscalizatórias de governos – mostraram ao mundo (e a nós, jovens marqueteiros) que também se obtinham lucros, muitas vezes substanciais, cortando custos e diminuindo a qualidade, fraudando contratos, omitindo informações, maquiando produtos, mentindo na propaganda ou disfarçando preços e condições de venda
Como observei, no início deste texto, o espectro revelado pelo movimento consumista nada mais era do que a antiqüíssima propensão humana ao uso da força ou da esperteza para enganar o próximo e apropriar-se dos seus bens, violando seus direitos. A neurótica busca por lucro rápido, em anos recentes, também contribuiu muito para que o marketing idealista se transformasse em marketing oportunista. Não sei se pode ser definido como uma culpa nossa, coletiva, mas, na minha opinião, as transgressões multiplicaram-se exponencialmente, com a tecnologia e, hoje, podem ser consideradas como o maior pecado atribuido ao marketing – e que contribui decisivamente para a péssima imagem que tem, de forma geral, em todos os países e – em especial – junto à sociedade brasileira.
Neste contexto, considero o trabalho que Silvio Lefèvre vem desenvolvendo – nas páginas da publicação semanal especializada PropMark4 e também no seu site derrapadas.com.br – com a série de artigos que batizou como “Derrapadas em Marketing”, como uma preciosa contribuição para que os profissionais da área não confundam sua necessária deontologia – ética particular de quem é assalariado de uma empresa ou instituição – com acomodação e conivência com o que é errado, desonesto e, às vezes, até ilegal e criminoso.
Num enfoque mais light, a maioria dos artigos de Silvio não tratam de “crônica policial”, mas chamam a atenção do leitor para outros pecados menores, mais cotidianos, porém que podem revelar distrações ou esquecimento a respeito de uma sabedoria muito antiga, no comércio: a de que o cliente sempre tem razão; que também encontramos numa outra, de que: a satisfação do cliente vem em primeiro lugar – e que o já citado Theodore Levitt resumiu, na sua famosa definição curta, de que Marketing significa conquistar e manter os clientes.
Acho que este livro irá contribuir, tanto para que os jovens estudantes de marketing e comunicação aprendam esta importante lição, como para que os profissionais mais experientes não a esqueçam.
1 – Que resultou no seu livro Esquizofrenia Social – ensaio sobre a ética da sobrevivência – Ed. Zouk, 2006.
2 – Possivelmente uma das melhores águas minerais de todo o mundo…
3 – Hoje tem o nome sem graça de Alameda Gabriel Monteiro da Silva
4 – Antigo Caderno Propaganda & Marketing, fundado e editado por Armando Ferrentini.